quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A Busca de Esù

Osun, sabendo que Esù não descansaria enquanto não a encontrasse, saiu espalhando, pelas tribos por onde passava que resgatara os bens valiosos que lhe foram roubados e que ele havia mentido quando disse a todos que eram suas descobertas. Por conta das peripécias dele e sua grande capacidade de inventar histórias, todos tenderam a acreditar na Iyàgbá, dando-lhe cobertura na fuga, mas sem lhe dar guarida, por temerem perder a simpatia dele.
Diante da dificuldade em se esconder, ela decidiu pedir abrigo a Òsóòsi, seu grande amor. Depois de ouvir a versão dela, ele decidiu abrigá-la em sua mata. O caçador tinha ciência de que o sagaz pandego não a incomodaria, enquanto estivesse por perto, mas sabia que, quando fosse caçar, nada deteria o furioso òrìsá, assim aconselhou Osun a procurar Iemanjá, cujo reino ficava no fundo do mar.
Depois de uma longa busca, Esù ficou sabendo onde a deusa da beleza estava escondida. Inconformado ele foi ao reino de sua mãe, com a certeza de que ela o ouviria a ponto de fazer Osun devolver-lhe seus bens preciosos.
Ele foi bem recebido, mas Iemanjá parecia ressabiada com a presença dele.
- Minha mãe! Disse ele com reverência.
- Meu filho! O que o traz por estes lados? Indagou tentando disfarçar.
- Minha mãe deve saber o motivo de minha inusitada visita, já que não costumo vir a seu belo reino. Esù ironizou.
- Bom! Já deveria saber que não viria aqui simplesmente para me ver.
- Já sei que Osun deve ter contado sua versão, fiquei sabendo em algumas tribos por onde passei. Espero que pelo menos a senhora minha mãe acredite na minha versão - falou curvando-se em respeito à benevolente Iyàgbá.
- Como posso acreditar em suas histórias, sendo que já mentiu tanto para todos. Quem pode me assegurar que conta a verdade agora? Desafiou Iemanjá.
- Como pode preterir seu próprio filho, para proteger uma Iyàgbá tão perversa!
Ele levantou, soltando chispas pelos olhos, fincou o pé no chão, levantou seu tridente e continuou furioso.
- Minha mãe pode escondê-la por enquanto, mas não sossegarei enquanto não obtiver o que por direito me pertence!
Ele virou-se de costas para Iemanjá, mostrando indignação e desrespeito, e saiu rapidamente, deixando suas pegadas ardendo em fogo no caminho que tomou para sair do reino.
À medida que andava, Esù sentia a fúria transformar-se em consternação: como sua mãe escolheu proteger Osun que o roubara?
Óosáàlá e Sàngo vinham conversando animados pelo caminho, andavam em direção ao reino de Iemanjá. Falavam sobre a evolução dos reinos, as guerras e as doenças. Às vezes riam, às vezes calavam-se, buscando levantar novos assuntos para deliberarem. Foi num intervalo destes que Sàngo avistou mais à frente alguém caminhando cabisbaixo.
- Olhe meu ‘pai’, aquele não é Esù? Perguntou Sàngo, apontando na direção do pandego.
- Sim! Mas o que aconteceu para estar tão absorto? Indagou Óosáàlá.
Esù nunca foi visto daquele jeito, sempre aparecia animado, sorridente e sempre atento, prestes a pregar a peça em alguém. Tal comportamento despertava o interesse de qualquer um que o visse.
- O que aconteceu com você, meu filho? Indagou Óosáàlá, ao chegar perto de Esù - Parece que é algo muito grave!
O tristonho contou-lhes o que sucedera: a conduta de Osun e o desprezo de Iemanjá.
Frente à atitude de sua amada, Iemanjá, Óosáàlá começou a desconfiar dele, devido seus antecedentes, já que tanto ele quanto Sàngo não sabiam do ocorrido. Frente ao relato, ele disse em tom punitivo, apoiando-se em seu cajado:
- Vejo que você não tem jeito! Sempre arrumando confusão! Ordeno...
- Espere, meu ‘pai’! Atalhou Sàngo - acredito que, antes de condená-lo, deveríamos ouvir Osun, para sabermos o que realmente aconteceu.
Diante do conselho de tão justo òrìsá, Óosáàlá pensou e decidiu ouvir a versão de Osun.
Os três dirigiram-se para o reino de Iemanjá rapidamente, Óosáàlá ouvia os conselhos de Sàngo, enquanto Esù não dizia uma palavra.
O ‘senhor do fogo’ não quis entrar no reino, seguiram então Óosáàlá e Sàngo, ansiosos para encontrarem Osun.
Uma vez no reino de Iemanjá, Óosáàlá ordenou que a bela Iyàgbá viesse a sua presença, para relatar-lhes o acontecido. Ela então veio e contou sua versão, chorando e soluçando. Quando o supremo tendia a acreditar na história dela, Sàngo interviu, dizendo que seria necessário colocar os dois frente a frente, para apurar quem dizia a verdade.
Osun mostrou-se resistente perante a ideia, temendo ser desmascarada, alegou estar com medo da fúria de Esù. Sentindo que algo de errado havia na recusa, Óosáàlá prometeu que nada lhe aconteceria e convocou todos os òrìsás para um conselho.
A bela Iyàgbá, sabendo do profundo amor que o fanfarrão tinha por ela (o mesmo fizera questão de espalhar pelos quatro cantos do mundo, dizendo que ela um dia seria dele), foi com suas mucamas para da tenda de Esù, ofertando-lhe um vinho, cuja safra deixava inveja ao néctar dos deuses. Ele não escondeu a surpresa e a satisfação de ter sua amada procurando sua companhia, de um salto ordenou aos convivas que se afastassem, alegando ter que dar atenção à Iyàgbá. Convidou-a educadamente a dividir seu aconchego, oferecendo uma deliciosa carne provinda da caça de Òsóòsi.
Deixando-se levar por seus prazeres, Esù entregou-se totalmente aos encantos de Osun, sem tirar nenhum momento os olhos da bela Iyàgbá, cujas madeixas eram enfeitadas com flores amarelas. Para agradá-la ainda mais, pediu a seus serviçais que enfeitassem sua tenda com tecidos amarelos que eram a cor preferida dela.
Osun dócil e sensual, apesar de ter várias mucamas, tomava para si a tarefa de colocar uvas e os nacos de carne mal passada na boca do pandego, que a cada mastigada gemia de prazer, que com certeza não eram simplesmente pelo maravilhoso gosto do alimento. De quando em quando ele jogava-se no colo dela com a boca aberta, apontando para a quartinha de vinho, fingindo uma incontrolável impotência. Ela, por sua vez, graciosamente pegava e virava o recipiente com tal precisão que nenhuma gota caía. Depois de saborear o gole de tão sagrado líquido, uivava feito um animal no cio, chacoalhando os braços e a cabeça, deixando o suor do seu corpo espalhar-se pelo aposento, às vezes chegava a levantar-se e saltar, deixando-se levar pelo ímpeto do êxtase. Nesta ora bastava a Iyàgbá tocar-lhe docilmente, para amansá-lo e fazer com que deitasse de novo ao seu lado.
Difícil saber qual prazer era maior: por um lado Esù gozava o prazer de ter a seu lado uma Iyàgbá, cuja beleza encantava a qualquer ser e ele nunca pôde chegar tão perto dela, mal podia acreditar no que acontecia, por outro lado Osun deleitava-se ao ter sob seu domínio tão viril e indomável pandego, cuja sagacidade e disposição todos invejavam. 
Depois de muito beber, ele se entregou por inteiro aos encantos da Iyàgbá, que, com toda sua infinita sedução, tentava convencê-lo a mostrar-lhe a caverna onde ele habitava. Entorpecido pelo vinho e pela beleza dela, concordou em revelar esse grande segredo.
Depois da festa Esù dispensou os serviçais e saiu pela mata carregando Osun nos braços, fazendo cumprir o que prometera. O caminho era longo e mesmo sob os afagos infalíveis dela, ele ia pensando no que estava preste a fazer, se valeria à pena ou não. Chegando perto de sua gruta, Esù deu ouvido à sua intuição e fez um encanto, colocando a Iyàgbá para dormir, para ela não saber onde era à entrada de sua morada, assim não haveria arrependimento de forma alguma.


Osun acordou num lugar iluminado por labaredas que saiam de fendas no chão, estava deitada sobre macias peles de animais que não davam para precisar quais eram. Sobre sua cabeça havia centenas de estalactites no teto da ampla caverna, cuja cor estava perto do laranja ou vermelho, dependendo da oscilação das chamas. Quando se levantou, observou que aos pés dos aposentos uma cesta repleta de mamões, seus frutos prediletos. Num giro pelo lugar pôde ver a amplitude da caverna que era repleta de aberturas laterais, eram como portas que poderiam dar em qualquer lugar.
Indignada começou a rodar em volta de si e gritar desesperada:
- Esù, Esù, onde está você? Por que me abandonou aqui?
Sua voz ecoava pela caverna fazendo parecer que havia muitas pessoas lá arremedando sua voz, isto irritava fazendo com que ela colocasse as mãos aos ouvidos e ajoelhar-se no chão. Depois de muito choro e lamentos, decidiu calar-se. Quando se levantou para arriscar entrar em uma das aberturas da caverna, ouviu um barulho que parecia ser de alguém que chegava.
De uma das aberturas atrás dela surgiu sorridente Esù, perguntando docilmente:
- Oh! Minha amada, já acordou?
Desculpe-me a ausência, precisei retirar-me por um instante apenas para guardar o meu pedaço de Oorum.
- Você não cumpriu o combinado!
Trazia-me no colo e de repente, acordei aqui sozinha, sem nem saber como aqui cheguei!  Disse ela furiosa.
- Nada posso fazer se no meio do caminho você adormeceu. Mas não vejo onde não cumpri o combinado, já que você agora conhece minha caverna. Não se alegra ao saber que é a única a conhecê-la? Disse ele astutamente deitando-se sobre as peles.
Vendo a possibilidade de seu plano ir por água abaixo, ela se jogou ao chão e começou a chorar.
Comovido pelos soluços da Iyàgbá, ele chegou perto e lhe acariciou os cabelos, tirando deles as pétalas das flores soltas. Percebendo a comoção do pandego, ela chorava mais e mais.
- Não é necessário tal pranto, o que fiz eu de errado? Perguntou Esù pacientemente.
- Nada - disse ela, enxugando as lágrimas do rosto com as mãos - eu que sou uma tola.
Como posso estar aqui aos prantos na presença de tão viril e belo òrìsá?
- Então por que chora? Disse ele totalmente embebido em sua vaidade.
- É que eu gostaria de tocar o pedaço do Sol, uma vez que é parte dos meus pais, que há muito me deixaram em nome de iluminar o mundo em que vivo. Sinto que isto me faria matar um pouco da saudade que sinto deles.
- Sinto seu pesar, mas acredito que tal objeto só aumentará a falta que sente! Disse Esù, procurando esquivar-se.
- Engano seu, eu sei que será bom para mim! Ela insistiu.
- Bom! Então eu vou buscar! Concluiu virando-se em direção à abertura de onde saíra há pouco.
- Não! Espere! Eu não vou ficar aqui só de novo! Falou, correndo atrás do pandego.
- Lamento, mas não poderá ir até minha gruta secreta! Esù mostrou-se arredio.
- Por que não quer que eu vá até sua câmara secreta, se nem sequer sei chegar até aqui.
Esù pensou por um momento e caiu diante do argumento da Iyàgbá, concordando que ela não oferecia perigo nenhum.
Os dois iam pelas grutas, enquanto Esù, esperto, entrava em várias aberturas, procurando deixá-la desnorteada.  Osun, usando de toda sua sagacidade, foi jogando pelo caminho as pétalas das flores que estavam em suas melenas, com o máximo cuidado, para ele não perceber.
Quando chegou à câmara secreta de Esù, ela ficou maravilhada, ao ver tantos pertences valiosos, e não economizou elogios ao pandego, que parecia desmanchar-se a cada palavra. Ele se abaixou e pegou a bola brilhante e entregou nas mãos dela. Uma sensação esquisita tomou conta da Iyàgbá, tal objeto mostrou que exercia uma imensa força sobre seu ser, um forte desejo de ter o pedaço de a qualquer custo, seus olhos brilhavam e espelhavam os pensamentos maléficos que passavam pela sua mente, fazendo com que tirasse os pés do chão por um instante, várias ideias sem nexo boiava na sua cabeça, o brilho da esfera fazia sua cabeça girar, girar...
- Osun! Osun! Este é o presente que ganhei de Ifá, o jogo de búzios - disse Esù entregando a ela as conchas.
As palavras dele trouxeram-na de novo a realidade, ela, como se tivesse acordado de um sonho, entregou-lhe a bola com uma imensa dor e pegou o jogo.
- Veja! É através deste jogo que fico sabendo presente, passado e futuro...
- Maravilhoso! Disse ela, pegando as conchas e comprimindo-as ao corpo como se quisesse que elas atravessassem sua pele, num estado hipnótico. Chegou a pensar em Ifá, seu tio, com ressentimento.
Enquanto Esù mostrava seus tesouros, ela não parava de pensar em como adquirir a bola dourada, às vezes soltava um elogio furtivo, tentando disfarçar seu intento.
Depois de saciada a curiosidade dela, ele a levou para os seus aposentos, para eles se deleitarem. Sem esquecer seu plano, a bela Iyàgbá entregou-se a um grande momento de amor, fazendo o pandego suar, uivar e gastar sua energia, falando falsas palavras de amor eterno com as quais ele delirava. Depois de muito tempo, o grande vigor dele caiu por terra, ela o levara à exaustão, fazendo-o cair em sono profundo.
Quando teve a certa de ele não levantaria, ela, seguindo as pétalas pelo chão, correu para o esconderijo na intenção de resgatar o objeto que, para ela, pertenciam-lhe por direito. Chegando à câmara secreta ela se abaixou para pegar a esfera, viu os búzios e decidiu levá-los também. Rapidamente ela pegou um pedaço de seu asó, fez uma trouxa onde ocultou os objetos e silenciosamente voltou para os aposentos. Na ânsia de obter o que queria, ela se esqueceu de como faria para sair dali, olhava para as aberturas na caverna e começou a sentir-se tonta. De repente prestou a atenção nas labaredas que saiam do chão e constatou que de uma das aberturas sobrava um vento quase imperceptível. Usando toda sua intuição, foi seguindo a brisa pelas aberturas da caverna.
Ao despertar todo amoroso, ele procurou Osun pelos seus aposentos na intenção de elogiá-la pela grande noite de amor. Quando descobriu que ela não estava, ele correu para a sua câmara secreta, lá deu falta de seus bens preciosos. Cuspindo fogo por toda caverna, Esù decidiu vingar-se. Foi correndo e vociferando pela gruta em direção à saída.
Osun já estava quase saindo, quando ouviu o eco dos berros de Esù. Procurando preservar-se, ela correu sem olhar para trás. Ele saiu da caverna emanando fogo para todos os lados, fazendo a floresta arder em fogo. Quando avistou um rio, ela mergulhou em suas águas, para fugir das chamas.

O Julgamento de Obatálá

Ao contrário das festas, apenas os òrìsás estavam presentes no conselho. Nàná mesmo distante e envergonhada. Ela recusava-se a chegar perto dos pandegos e, se pudesse opinar, certamente condenaria Esù, além de odiar qualquer ser masculino, adorava Osun, a única que foi visitá-la e presenteá-la após ter sido banida do reino por Obatala.
Osonyin, embora não era visto por ninguém, fazia-se presente, de quando em quando assoviava e ria. Muitas versões corriam entre todos, muitas delas já haviam sofrido os efeitos da boca-a-boca transformando-se nas mais absurdas histórias.
Sàngo prostrou-se ao lado de Óosáàlá, enquanto Esù e Osun ficaram em pé frente a frente no centro do conselho. Os olhos de fogo soltavam chispas, enquanto os olhos d’água dela lacrimejavam.
- Com o poder me concedido por Olórum, o criador, convoquei a todos, para presenciarem este julgamento. Espero que todos tomem por conhecimento o que virem e ouvirem hoje! Falou Óosáàlá com eloquência. Sob os olhos dele, Sàngo conduziu o julgamento. Pediu a Esù e Osun que contassem suas versões. Depois chamou Ifá para esclarecer sobre os búzios.
Com o coração partido, já que tinha que desmentir a versão de sua sobrinha e filha de criação, contou a todos como e porque deu o jogo ao pandego. À medida que Ifá relatava, Esù enchia-se de razão e Osun ia curvando-se sobre si.
- Ifá! Disse Óosáàlá, acredito que não agiu certo dando tão poderoso jogo a um só òrìsá!
- Sim, Óosáàlá! Eu concordo. Para corrigir isto - disse Ifá, pegando os búzios e jogando-os para o céu - determino que a partir de agora cada búzio representará um òrìsá no jogo. E como a princípio eu o dei a Esù, todos que forem consultar este jogo deverão pedir permissão a ele.
Para esclarecer sobre a esfera, Oduduwa fez-se presente.
- Venho falar a verdade, pois presenciei o fato. Esù, preso em sua ambição, retirou esta bola brilhante de uma aldeia, que ruiu pela falta de tal artefato e, mesmo tendo sido alertado do que poderia acontecer, nem sequer se abalou.
Após o relato da ‘mãe natureza’ houve um burburinho entre os presentes, Esù abaixou a cabeça e cerrou os punhos. Sàngo sentou-se e Óosáàlá levantou-se dizendo:
- Visto os fatos, concluo que: tanto um quanto outro errou: por um lado Osun roubou artefatos que pertenciam a outro òrìsá, por outro lado, Esù mentiu, dizendo ter tirado um pedaço de Oorum, mas de fato dizimou uma aldeia. Diante dos fatos eu decido que a esfera dourada não ficará com nenhum dos dois, mas pertencerá a ambos: o metal ficará incrustado nas rochas, aprisionando a ganância de Esù, mas para ser tirado, precisará ser garimpado nas águas, para lavar a inveja de Osun.
Enquanto a Iyàgbá chorava, Esù falou irado.
- Acato o veredicto - virando-se para Osun, praguejou - já que fui enganado e julgado por conta deste metal, todo aquele que tiver contato com ele, assim como você, mostrará seus demônios, sendo tomado pela nossa ambição presa nele.
Ao sair do conselho, Esù irado jurou para si que sempre perseguiria tanto Osun quanto qualquer um que vivesse sob sua proteção (daí nasceram os Epurin, filhos (as) de Osun perseguidos por Esù), e, como vingança, inseriu sementes negras nos frutos prediletos dela, os mamões, para que, quando ela fosse comer, sentisse sua presença e se lembrasse do mal que lhe fez



quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Òsé méjì

Que o Dinheiro, grande objeto de desejo de 9 entre 10 seres humanos, não seja um inimigo. Que a modéstia no trato e firmeza nas decisões, façam com que o domínio sobre esta energia seja implacável e condizente com os ensinamentos de Ifá.
Que o ano que se aproxima seja de abundancia e domínio sobre ela.
Foco em seus objetivos.
Odun didun.


Òségunméjì é conhecido por ter feito alguns trabalhos espetaculares no céu. Ele era apenas notório por sua disposição para briga. Foi o único, entretanto, que revelou como dinheiro veio do céu para a terra. Ele revelou como um Áwo chamado Orokun Aro Koose Munukun fez divinação para dinheiro quando este estava se preparando para partir do céu. O mesmo Awo fez divinação para as divindades sobre o que deveriam fazer para serem capazes de conseguirem os benefícios que aquele dinheiro pudesse dar. 

O significado do nome do Áwo é:
O joelho do aleijado não se dobra.

Cada uma das divindades foi avisada a fazer sacrifício com dezesseis: pombos, galinhas, ratos, peixes, bolinhos de feijão (àkarà) e etc.

Em vez de fazerem o sacrifício individualmente como foram advertidos a fazer, decidiram juntar as mãos e fazer um único. Após o dinheiro ter partido para o mundo em forma de búzios, crescendo do céu até atingir o chão.

Logo que identificaram o impacto do dinheiro no chão, as divindades foram juntas e ponderaram em como levá-lo para suas várias casas para gastar. Ọrúnmilá, entretanto alertou-os para não retirar o dinheiro até procederem à nova divinação e sacrifício. Ògún desafiou Ọrúnmilá a ficar em casa e fazer sua divinação e sacrifício enquanto que o restante deles ia escavar o dinheiro. Ele se perguntou o que seria necessário para fazer divinação e sacrifício antes de comer a comida servida na mesa.

Ọrúnmilá aceitou a contestação e lhes disse que não tinha a intenção de acompanhá-los na escavação do dinheiro naquele determinado momento, nem impor seu desejo e que eram livres para continuar sem ele.

Ògún pegou sua enxada e pá que fabricou para aquele propósito e partiu para o monte de dinheiro.

Chegando lá, cavou muito o monte de dinheiro, retirando de um lado tudo o que foi capaz de extrair. Quando ele cavou fundo no monte, a camada de cima cedeu, e a avalanche caiu sob Ògún e esmagou-o vivo sob os escombros, restando quatro pedaços de búzios em seu peito.

Sanponna foi o próximo a ir ao monte e terminou da mesma forma com 16 búzios em seu peito.

Todas as outras divindades tiveram experiência similar incluindo Şàngó e Olokún. Quando eles não retornaram para casa, Ọrúnmilá começou a se preocupar com o que tinha acontecido. Decidiu ir e verificar por si o que estava impedindo-os de retornar. Chegando descobriu todos mortos e juntou e amarrou em partes separadas o número de búzios que ele achou no peito de cada um deles.

Desta forma é dito que a avareza foi quem mandou de volta a primeira geração das divindades que habitavam a terra, para o céu. Osegunmeji, entretanto adverte que se a questão de dinheiro não é controlada com discrição e paciência, virá uma avalanche sob o procurador e irá destruí-lo.

Este é o porquê todos aqueles que correm atrás de dinheiro com cobiça e avareza serão destruídos sob uma avalanche de dinheiro.

Neste meio tempo, Òrúnmìlá decidiu que não havia lugar de acesso ao dinheiro do modo como os outros fizeram e foram para casa sem alcançar o monte. Ele preferiu abordar a situação com suas características secretas.

Chegando a casa, consultou Ifá que lhe disse para fazer sacrifício com dois pombos, duas escadas de mão e quatro ferrolhos. Ifá lhe disse para fixar os ferrolhos em cada um dos quatro cantos do monte, e servir o monte com os dois pombos. Ele foi avisado a jogar inhame amassado (yam) ao redor do monte porque o pombo e o inhame amassado eram as comidas prediletas de dinheiro e foi avisado a posicionar as escadas no monte e começar escavando do ápice para a base.

Ele fez conforme foi avisado por ifá e quando ofereceu o sacrifício, ele falou um encantamento dizendo ao dinheiro que ninguém mata aquele que lhe oferta comida, e implorou ao dinheiro para não matá-lo como fez com os outros, tendo oferecido sua comida a ele. Depois disso escalou o monte com as escadas e escavou-o em pequenas quantidades até que levou tudo para sua casa. Foi a partir daí que Ọrúnmilá começou a assentar no topo do dinheiro e porque seu altar é freqüentemente decorado com um trono de búzios. Para consultar Ọrúnmilá em divinações sérias, o sacerdote de Ifá tem que assentá-lo primeiro em um trono de búzios.

Após levar o monte de dinheiro para sua casa, convocou os filhos mais velhos das divindades mortas e deu para casa dum deles o número de búzios que achou no peito de seus respectivos pais.

É o número de búzios que Ọrúnmilá deu para os filhos das divindades mortas que eles usam para divinação até hoje.


Este é o por que em qualquer momento que Osegunmeji aparece na divinação para alguém, a pessoa será advertida a procurar por dinheiro com cuidado e discrição para que ele não possa destruí-lo.
 
Àse.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

As Simbioses de Èsù-Elégba e o seu Amigo Macaco

A obra de protestantização esteve em toda a parte ligada a um trabalho educativo (escola e tradução da Bíblia em língua vernácula, muitas vezes fazendo uma língua se tornar escrita). 

Jean Baubérot

 

Retomando os elementos semânticos constantes que se têm vindo a constituir objeto de interpretação, especificamente o tema «atravessar rios», propõe-se, por proximidade semântica e pelo significado que a sua geografia cultural tem para a literatura afro-americana, outro interveniente verbal, na zona dialogante de intertextos em estudo:

Uma narrativa oral, recolhida num país da religião yorùbá, o Benim, por Missionários Combonianos do Coração de Jesus, intitulada «A Vida é um Rio que Temos de Atravessar».

A viagem da mitologia yorùbána para o Novo Mundo gerou possibilidades reinterpretativas diversificadas, no nível do campo religioso, tendo como uma das consequências desse contato, entre as culturas negras africanas e as culturas europeias, a “Passagem Intermédia” do deus yorùbá chamado Légba, ou Elégba, nomeado Èsù na Nigéria. No entanto, pelas desordens constantes que esta divindade acarreta, ela foi vista e ensinada como Satã pelos missionários europeus em África. Èsù-Elégba, ou o mito Èsù-Elégbára, assim como o designado significando macaco, é a voz dupla da interpretação textual afro-americana, proveniente da tradição negra, conforme a teoria literária de Henry Louis Gates.

 

A Vida é um Rio que Temos de Atravessar

 

Três homens caminhavam pelos campos em direção a um rio, que pretendiam atravessar antes de a noite cair. Um levava um remo, outro um arco e flechas e o terceiro, um homem muito humilde, não levava nada na mão, apenas um turbante branco à roda da cabeça.

Chegados ao rio, os três ficaram boquiabertos com a largura e a profundidade das águas e interrogaram-se:

Como é que vamos atravessá-lo?

Cada um arranje-se como bem entender, declarou um deles.

Encontramo-nos na outra margem.

Aproximaram-se da água. O primeiro levantou os braços musculosos e com o remo, bateu na água com força. As águas separaram-se e ele pôde atravessar sem dificuldade.

Quando atingiu a outra margem, as águas voltaram a unir-se e ele gritou aos outros:

Coragem! Venham também!

O segundo empunhou o arco e, fazendo pontaria, lançou uma flecha que se foi cravar numa árvore junto do rio, abatendo-a, devido à força que levava.

A árvore era mesmo grande e, ao cair, ficou a boiar nas águas. O homem saltou para cima dela como se fosse um barco e atravessou também o rio. Ainda mal tinha tocado na outra margem, quando a corrente impetuosa arrastou a árvore para longe.

Os dois que haviam atravessado as águas gritaram ao terceiro:

Coragem! Venha também!

Este, então, desenrolou calmamente o longo turbante, fez um nó corrediço numa das extremidades e lançou-o para longe, para a outra margem do rio.

O nó foi prender-se num galho de uma árvore robusta. Atou a outra ponta do turbante a uma raiz e, sobre esta estreita ponte, conseguiu atravessar a corrente.

Os três homens ficaram de novo juntos do outro lado do rio.

Antes de prosseguirem viagem, cada um à sua moda e por caminhos diferentes, disseram uns aos outros:

A vida é como um rio. Cada um tem de procurar a maneira de atravessar com os recursos que a natureza lhe deu.

O texto acima transcrito alarga a zona de diálogo proposta, pela reintrodução da variante temática “atravessar o rio”.

A imagem poética da água, ao persistir em se transformar em substância literária, quer na tradição africana, quer na europeia, pela interação do elemento natural rio, sempre mostrou seduzir a mais íntima imaginação humana.

O corpo do rio é água, superfície que redobra a imagem do homem, vidente e visível, a água é espelho de Narciso, ou tabuleiro de adivinhação, é reflexividade que traduz todo o mundo sensível, permite ao homem ver o que não é visto, por isso, a água traduz e o homem interpreta. A água, que nas sociedades africanas tradicionais é a oferenda predileta das divindades, à luz da mitologia yorùbá, pode ser tomada como meio de Èsù, que ensina Ifá a descodificar, a ler os textos sagrados aos homens. A fluidez que aqui liga a divindade e o seu adorador é o leito que possibilita o encontro, porque permite a travessia entre margens, do desconhecido para o que Èsù dá a conhecer, a sobreviver e a oralidade.

Assim, na memória dos textos vive a ideia de que a água, ou rio, desde sempre dotaram a fantasiadora mente humana, razão que motivou ainda a apresentação do conto do Benim, em que o elemento rio pertence ao fundo estável unificador dos textos intervenientes em diálogo, o substrato, ou princípio (arque) que Tales de Mileto julgou encontrar na água.

À luz do pensamento filosófico de Gaston Bachelard, sobre o papel simbólico da água no imaginário humano, pode compreender-se que, na interação de significações contida na metáfora “atravessar o rio”, se implica em uma “provocação do mundo”.

Traduz-se e segue-se o pensamento de Gaston Bachelard. Segundo o filósofo, a noção é indispensável para compreender o papel ativo do nosso conhecimento do mundo.

Dirigida ao sujeito que, por sua vez, na busca de vencer o seu adversário, o rio ou a vida, aceita o desafio proposto e na justa medida hierárquico das ofensas sofridas, responde com a mais vigorosa força incisiva ao seu alcance, vitória que o surpreende e lhe confere o prémio final, ou não.

O deslumbramento conseguido pelo herói que, com êxito, atravessa o rio, pode traduzir-se em conhecimento adquirido, por si, à custa de mais ou menos esforço, um processo ativo, à medida do investimento feito pelo sujeito, o qual, segundo Gaston Bachelard, chega a ser colérico, uma medição de forças:

Assim, a relação entre o símbolo natural água e o tempo passado, em que se entalha uma circunstância de trânsito individual, vem acordar o percurso do herói clássico, pelo tema da convivência violenta entre o sujeito e o mundo, conflito de etapas, na viagem circular - descendente, Morte e ascendente, Vida ou o mistério humano da regeneração, etapas difíceis ultrapassadas por quem “atravessa rios”. Uma simbologia que nos conduz ao lugar imanente do mito.

Os três homens que pretendem atravessar um rio, muito largo e profundo, respondem individualmente ao desafio da vida humana, cada um aguçando o seu engenho face aos recursos de que dispõe: um remo, arco e flecha e um turbante. O significado das três ações humanas enunciadas no conto de Benim parece configurar-se como componente simbólica inalterável, não só de outros contos e lendas, como também da oralidade quotidiana. Com todas as transformações operadas ao longo dos tempos, o sentimento metaforizado de que a vida é uma passagem com obstáculos que temos de ultrapassar, ou atravessar, de que a travessia para uns nada custa, para outros se afigura exercício de inteligência e sentido aguçado de oportunidade, sendo ainda, noutros casos, um trabalho arduamente suado, parecendo brotar do manancial imagético, proveniente da fonte do imaginário humano.

A concisa problematização, gerada à volta do apresentado arquétipo de água doce, tematicamente desenvolvido em torno da transposição de um leito fluvial, ficionalizado num conto oral do Benim, recolhido por missionários, pretende suscitar uma indagação sobre possíveis agentes de mobilidade semântica verbal em África, buscando perceber, como em nível do “subsolo dos textos”, a tradição religiosa cristã, claramente presente na literatura afro-americana, pode também estar presente na tradição oral africana.

O ditado xhosa reinterpretado na autobiografia de Nelson Mandela pode velar, ainda, via missionação, um cruzamento com outra ordem sagrada, ou seja, com os rios bíblicos cristãos, por exemplo, com as águas apartadas para Moisés passar, e não atravessar, porque Moisés atravessa o deserto, não as águas. Contudo, a verificação desta simbiose não cabe no âmbito da dissertação em curso.

Os fenómenos de transformação cultural, enquanto objeto de estudo da antropologia moderna, depois de devidamente reconhecidos e conceptualizados, puseram em causa as concepções coloniais de etnicidade e cultura, tendo abalado os pressupostos de coincidência linear entre ambas, ao desconstruir a fé inabalável nas culturas genuínas, provando a mestiçagem cultural como processo ativo de trocas, de “retenções” e “reinterpretações” várias. Melville Jean Herskovits, defensor de forma sistemática de uma herança cultural africana, visível nas sociedades afro-americanas, refere-se, especificamente, aos fenómenos que designa de «retention and reinterpretation» (Herskovits, 1990, p. xxxvii), ao aludir ao campo religioso, oferecendo como exemplo a prática de gritos nas igrejas protestantes afro-americanas. Mantendo em foco o domínio religioso, retomado a miúde no trabalho do antropólogo, e em alternância com o caso de mestiçagem cultural afro-americana, vale agora recordar o papel aculturador das igrejas ocidentais nos países africanos, equacionando a ação das missões na interferência, recíproca, das duas tradições religiosas: a ocidental e a africana.

O empreendimento da evangelização ocidental em África implicou um trabalho, não só do foro religioso, mas também educativo e cultural, tendo utilizado como estratégias, quer o ensino da língua do colonizador, quer a tradução da Bíblia em línguas-mãe africanas. Para além dos fatos indicados, os agentes religiosos efetuaram, ainda, trabalhos de recolha no terreno, fixando, por tradução, a tradição oral local, de que se constitui exemplo a ação do missionário suíço Henri Junod, em Moçambique, sobre os Bantu, trabalho que lhe valeu a expulsão da colónia portuguesa, pelo governo da metrópole, o qual alegou, neste caso específico, excesso de cumplicidade para com as populações. Para um melhor entendimento de factos culturais relacionados com questões de reinterpretação das tradições religiosas em África, a sul do Sara, deve também ter-se presente os movimentos messiânicos que africanizaram o cristianismo.

Os exemplos do Congo, no século XVII, à volta da figura carismática de Kimpa Vita, que profetizava a restauração do antigo reino do Congo, e o caso do Kibanguismo, fundado pelo “profeta” Simon Kimbangu (1889-1951)43 que, para além de recuperar crenças e práticas cristãs baptistas, conferiu ao movimento um significado político, afirmando-se como o salvador, no sentido de dirigir o caminho da independência, e tendo anunciado, posteriormente, uma fase apocalíptica, incentivando a destruição da ordem colonial branca. Mais tarde, o mencionado movimento veio a constituir-se um meio poderoso, do qual Mobutu se serviu para solidificar o seu poder. Para além de muitos outros sincretismos religiosos, deve ainda ser recordada a proposta de desocidentalização da teologia cristã, levada a cabo pela Associação Ecuménica dos Teólogos do Terceiro Mundo, em Dar-es-Salam, em 1976, que fez uma reformulação do cristianismo, dentro de outros quadros culturais (Cf. Delumeau, 1999, p. 188).

Regressando ao conto oral recolhido no Benim, e retomando a perspectiva comparatista que tem vindo a ser seguida, pelo convite que faz ao diálogo entre mitos fundamentais, os quais se constituem marcadores culturais importantes da dinâmica religiosidade do homem africano, vivente de um espaço geográfico pulverizado de religiões diversas, incluindo o Islão e o Cristianismo, pretende aqui fazer-se salientar o fato de no sul e médio Benim a cultura autóctone dominante ser a Yorùbá.

A mitologia yorùbá é complexa e exprime-se a partir do essencial mito da criação do mundo que, em exercício de síntese, se resume às componentes semânticas que tomam a redação seguinte: nesse tempo, tudo estava coberto de água, e quando o Ser Supremo (Olórun) confiou a Òdúdúwá a importante missão de criar o mundo (Ayé), entregou-lhe um lenço de cabeça de mulher, contendo terra (ou areia, erùpè) e um galo. Òdúdúwà desceu do céu na sua piroga, apenas teve de desatar o seu lenço e despejar o conteúdo. O galo afastou a terra em todos os sentidos, fazendo assim surgir à terra habitável. No entanto, o panteão dos Orixás, deuses yorùbáno, é muito mais vasto. Se Òdúdúwà recebeu a missão de criar o mundo, Obàtálá foi incumbido de dar forma aos humanos, a partir de argila amassada; Oxum reside no rio Níger, Ogum é o deus do ferro e da guerra, Sapponá, deus da varíola; Sàngó, deus do raio, do fogo e Ifá são associados a um sistema divinatório intrincado, assim como ao mito yorùbá da escrita.

Estes últimos são dois antepassados humanos divinizados:

Sàngó foi rei e viveu em Oyo, o seu reino, Òrúnmìlá viveu na cidade de Ifé, considerado o verdadeiro «umbigo do mundo», segundo a cosmogonia yorùbá. Segundo esta forma particular de ver e viver o cosmos, a vida humana está nas mãos das divindades, ainda que dependa, muito especialmente, da relação que o sujeito assiduamente vai mantendo com uma ou duas delas, escolhidas, quer por iniciativa própria, quer dos pais. A existência plena do Eu está profundamente interligada com a vida dos seus antepassados, os quais, segundo o ponto de vista em exposição, continuam ativos no mundo. Em correlação com a malha relacional acima indicada, o indivíduo está também ligado aos seus progenitores, e com os anciãos da aldeia à qual pertence, salientando-se, ainda, a teia familiar, cujas regras tradicionais devem conhecer e respeitar, se quiser que os espíritos não o inquietem. Viver é gerir toda esta pluralidade de relações, assim como, simultaneamente, estar desperto para receber a energia do mundo natural, lugar uno, completo, onde o ser não morre, mas, antes, está: «Nas línguas africanas, para significar que um ser é dotado de vida, as pessoas limitam-se com frequência a dizer que está na vida ou no mundo».

Por conseguinte, o homem africano de que se fala é um ser sistematicamente empenhado em dramatizar um papel social ativo, pois a sua paz e o seu equilíbrio dependem inteiramente do rigoroso respeito pelas tradições, cujos códigos ritualistas. O sistema divinatório em poder da divindade Ifá, também nome dos textos sagrados yorùbá, foi-lhe ensinado pelo seu criador, Èsù-Elégbára, e consiste na descodificação de configurações simbólicas, obtidas a partir de dezesseis bagas sagradas de dendê, em disposições várias.

Tem obrigação de conhecer, porque a eles é iniciado desde a aurora da primeira infância.

Se todas as práticas sagradas forem cumpridas, o equilíbrio do ser na comunidade é garantido, pois, à luz da moral religiosa yorùbá, em princípio, o mundo e o ser não são criados para o mal, nem para a dor.

Para o homem africano, que partilha a postura sagrada tradicional das culturas a sul do Saara, viver, ou assegurar uma existência pacífica, ou seja, “atravessar, de margem a margem, as águas do rio, que coliga duas vivências de uma vida única”, é buscar, sem parar, o balanço da estabilidade referida. A água é o símbolo da vida, porque sem ela não há vivos, por isso, no diálogo textual em apreço, o rio é símbolo de vida terrena, passagem, em que o sujeito se encontra em trânsito entre duas vidas, num mesmo mundo em que a morte não existe. Desta maneira, o êxito da “travessia do rio”, enquanto percurso semeado de embustes, que o sujeito deve resolver bem, é um exercício de inteligência, sujeito ao papel dinâmico e criador do homem africano.

Trazer para o decorrente diálogo um conto oral, recolhido em África por missionários religiosos, agentes de evangelização, tem como objetivo continuar a chamar a atenção para um conceito de tradição inclusivo, misto e, por essa razão, dinâmico, problematizador da permeabilidade de diferentes culturas e ordens sagradas, quer por imposição, quer por convívio pacífico, as tradições modernas enquanto frutos de processos simbióticos vários.

Nesta perspectiva, tornando visível a permeabilidade cultural engendrada entre as culturas negro-africanas e as ocidentais, mas continuando, ainda, no seio da cultura yorùbá, a distinguir a sua projeção no universo cultural afro-americano, cabe neste passo destacar com maior detalhe aspectos do deus Efón, chamado, no Benim, Légba, ou Elégba, e na Nigéria Èsù-Elégbára, «de quem os missionários e os convertidos fizeram e fazem o seu Satanás», como já foi anteriormente referido.

Segundo Henry Louis Gates46, a figura mítica de Èsù-Elégbára, tal como a de outros orixás yorùbá, sobreviveu à Middle Passage, tendo sido objeto de reinterpretações e nomeações várias nas diferentes culturas negras do Novo Mundo:

Èsù, no Brasil; Echu-Elegua em Cuba; Papa Legba (pronunciado La-bas) no Vodu do Haiti e Papa La Bas no Vodu dos EUA. No entanto, o perfil-padrão desta entidade divina mantém-se inalterável nas figurações apontadas. Èsù-Elégbára é, na sua essência, uma divindade ambígua, porque nele existe a dualidade, que procura conciliar, ou utilizar como jogo, diversão e prazer seu. Intérprete e tradutor de Ifá, ele é o mensageiro entre os deuses e os homens, adivinhando e transmitindo os desejos de cada parte, mediando e manipulando o sagrado e o profano, assim como outras situações binárias, tais como a verdade e sua compreensão, o texto e sua interpretação, a palavra e o seu sentido. Pois, Èsù-Elégbára é o linguista divino, fala, traduz e interpreta todas as línguas, sagradas e humanas, impondo-se, por essa razão, como importante entidade da interpretação verbal. Ele é o Hermes que, nos textos afro-americanos, regula as tensões entre oralidade e escrita, sobretudo nos textos escritos em vernáculo, tal como o Talking Book de Zora Hurston, pela utilização do discurso indireto livre, representação da oralidade na escrita, enquanto voz da comunidade negra do Sul, a “voz dupla” que, na teoria africanista de interpretação textual, criada por si, busca as suas origens no deus yorùbá Èsù-Elégbára, figura da interpretação, dialogante ou recriada na imagem efabulada afro-americana do chamadoSignificando o macaco. Ambas são personificações do jogo verbal e da diversão, à luz das quais o crítico literário propõe ler a literatura afro-americana do sec. XX, (Zora Neale Hurston e Ishmael Reed), explorando a linguagem vernácula, ou Black Dialect, utilizada nas obras em menção.

Rompe as normas de George S. Schuyler (Gates, 1989, pp. 179, 180), ou a perspectiva intertextual a que Gates chamou «Speakerly Text» Èsù-Elégbára é o princípio da linguagem, que viajou de África para a América, levando consigo um macaco e a palmeira na qual este vivia de onde foram selecionados os dezesseis dendês, que se transformaram nos caracteres sagrados da adivinhação Ifá. O macaco que resistiu à viagem intercontinental escravagista é, segundo Gates, o guije, ou jigue,afro-cubano, assim como o designado Signifying Monkey afro-americano.

O Signifyig Monkey, tal como o amigo que com ele viajou, é também a personificação da diversão, gosta de fazer partidas, lançar a confusão, de iludir, de brincar, de provocar o riso, constituindo-se, assim, figura de retórica da linguagem vernácula afro-americana, sátira, paródia e ironia, como estratégia discursiva da oralidade negro-americana, bem presente nas “estórias” recolhidas por Zora Neale Hurston, e apresentadas em Mules and Men (1935), assim como no manuscrito que intitulou Negro Folk-tales from the Gulf States, só publicado em 2001, com o títuloEvery Tongue Got to Confess: Negro Folk-tales from the Gulf States.

A duplicidade que vive nos mitos Èsù-Elégbára e Signifying Monkey é a voz dupla traquina do conto e da lenda, figuração de uma escrita que representa a oralidade, estratégia de inscrição retórica de que a literatura afro-americana se constitui representação, em abrigo da tradição. A fala que nesta escrita continua a contar “estórias” é uma voz que vem de longe, e quer ir para longe, cruzando-se, no entanto, com outra escrita, não a que Ela, pai dos adivinhos, ensinou, outrora, ao homem branco e aos meninos africanos, muito menos a escrita que Ifá ensinou a escrever nos tabuleiros de adivinhação. O cruzamento de que se fala é o cruzamento entre a palavra oral e a escrita, entre tradição e modernidade, encruzilhada de onde o mito vigilante (Signifying Monkey) se coloca como guardiões da tradição oral não fossem Èsù-Elégbára e o seu amigo Monkey os atentos guardiões dos cruzamentos. Os cruzamentos são locais confusos, ambíguos, de união e desunião, aonde, à boleia, o negro chega e parte, sítios de passagem que requerem extrema atenção, porque o perigo espreita e o acidente pode surgir. O mesmo se passa no meio ferroviário, nas estações designadas de entroncamento, muitas delas de entrada vedada aos negros, mas onde, apesar de tudo, e escapando sempre à vigilância proibitiva, os negros ousavam o Blues, infringindo, no Sul, e sempre em erronia, até à comunidade de acolhimento seguinte.

No período anterior à chamada Emancipation Proclamation, cantar e tocar Blues eram deste modo, infringir, daí a simbologia de se estar alerta no cruzamento, salientando-se a localização “superior” de quem vigia, pois o vigilante possui visão.

 

http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/538/1/19828_ulsd_re477_Tese_%20Dout.pdf

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Vamos falar sobre pais/mães e padrinhos em Ifá e Òrìsà.

Existem aspectos neste texto que eu particularmente discordo, em outros concordo plenamente. Porém, a finalidade e fazer com as pessoas repensem sua relação dentro de uma casa de àse. Um bom assunto para ser discutido e analisado a luz dos fatos.
Eu mantive o texto na integra para não distorcer a opinião do autor, tentei fazer a tradução o mais próximo da realidade destes problemas recorrentes.
Boa leitura.
Ire Bàbá / Iyéyé.
Por Áwo Àkòdá.
 
Aboru, Aboye, Abosise e saudações a todos os devotos de Ifá, Òrìsà e Egúngún.
Que seja conhecido desde o início que não existe tal coisa de padrinhos em estudo, prática e adoração de Ifá, Òrìsà e Egungun.
Esse mito vem do Catolicismo, a Igreja Católica criou este conceito de parentesco. Na Igreja Católica os pais biológicos de uma criança irão escolher dois indivíduos um macho e uma fêmea para serem padrinhos de seu filho. Não é nem mesmo necessário que os dois indivíduos sejam casados.
Estes dois indivíduos prometem fidelidade a esta criança em uma cerimônia de batismo, que se alguma coisa acontecer com os pais biológicos os padrinhos irá intervir e assumir a criação contínua da criança.
Nota: você tem o direito de chamar alguém por qualquer rótulo, etiqueta, ou o título que você assim escolher. Mas saiba e entenda que não existe o conceito de padrinho em Ifá e òrìsà.
O culto de Ifá está construído e estabelecido em uma premissa de professores e alunos em que o direito é claro e fala por si em voz alta. Como é que se colhe o grande beneficiário dos muitos professores que Ifa e Òrìsà têm para oferecer, se você está escravizado, amarrado e obrigado a um padrinho ou padrinhos que estão sob o entendimento de que você deve ser de grande benefício para eles e não eles a você.
Aqueles de nós que levam o nome de Bàbáláwo, Ìyànifá, Bàbálòrìsà e Olòrìsà são servidores do povo e não deve ser confundido ou entendido como parte da realeza Africana (reis e rainhas). Não se permita ser vítima do rei e da rainha e o complexo de súdito leal. É hora de colocar esse mito para descansar. Mesmo Olódùmarè não é o nosso pai ou a mãe, é um criador e está relacionado à criação. Nascemos com dois conjuntos de pais, biológicos e espirituais. Nossos pais espirituais são os nossos pais Òrìsà. Dois conjuntos não três.
Um babalawo é um pai, mensageiro e professor de Ifá, uma Ìyànifá é uma mãe de Ifá, zeladora de Ifá e cuidadora do povo. Um sacerdote / sacerdotisa de Òrìsà é um pai de Òrìsà / mãe de Òrìsà, zelador de Òrìsà e cuidadora do povo e etc.
Temos de parar de alimentar aquilo que é popular. Um elevado nível de popularidade, não é uma indicação ou uma manifestação da verdade. A maioria dos altos níveis de popularidade vem de ser uma pessoa que fala para um monte de pessoas o que elas querem ouvir e não o que eles precisam ouvir.
Devemos destruir este nível de dependência que algumas pessoas criaram e permitiram a outros criarem e nos envolver. É hora de clarear a visão e colocar esta coisa de padrinho, pai/mãe para descansar, tudo isto de padrinho, irmão/irmã é uma loucura. Se você se deparar com um ancião de Ifá que tenha um templo e você se associar a ele, você automaticamente será mais um membro deste Templo de Ifá. A mesma regra serve para alguém que tenha Ilè ou Ègbè.
Pronto. Você acaba de se tornar um membro deste grupo de indivíduos que tem, ou, devem ter jurado alguma forma de fidelidade a sua liderança. Na vida a gente percorre um caminho em uma jornada para entender nosso destino e os que são necessários para navegar neste curso de ação são os nossos professores, por que somos estudantes dos aspectos multi facetados da vida. Pare de olhar para o que você já tem e o que você quer. Comece a perseguir o que você realmente precisa. E você precisa de um bom professor.
Você precisa ser um bom aluno. Você precisa do conhecimento divino, da sabedoria e do entendimento para definir a fundação, a estrutura e a premissa da jornada de sua vida.
Voltando ao caso em questão, criamos obstáculos e barreiras para nós mesmos que vivemos fora da ordem dinâmica de Ifá/Òrìsà e ancestrais. Sob a égide do mito padrinho, pai/mãe, o que aconteceria se um Bàbáláwo solteiro está esperando Ifá lhe apontar uma boa esposa e esta mulher faz parte de seu Ilè. Se Ifá está esperando apenas que sua maturidade mental, física e espiritual aflorem para lhe dar este caminho e esta mulher está sentada em sua esteira?
Ifá faz sua atenção se voltar para tal mulher e o Áwo está pronto para lhe dar atenção, amor e respeito.
O que acontecerá agora?
Quando o Bàbáláwo estava tratando esta mulher como 'filha'.
A confusão está formada.
E a confusão irá aumentar se houver outros casos dentro desta suposta família.
Teremos a confusão formada por causa de mitos construídos no passado?
Se estas pessoas estão presas na certeza de serem irmãos, irmãs ou filhos então terá uma rota em direção ao desastre. A vida é uma questão de somar e não subtrair.
Devemos viver nossas vidas somando os diferentes aspectos dela.
Adicionando a construção estaremos deixando-a forte. Temos que avaliar os prós e os contra de cada situação. Viver aprendendo, acrescentando e progredindo em Ifá/òrìsà é o que o senso comum deve se basear.
O que eu aprendi em minha vida é que o senso comum é tudo. Um bom professor vai deixar o aluno com a visão clara do que é melhor para ele e não ao contrário, onde um professor tem a visão ainda em formação, em um estado de confusão onde muitas perguntas não terão as respostas corretas, isto é algo que deve ser bem resolvido.
Existem muitas pessoas que abração este mito do padrinho, pai/mãe de tal forma que eles não podem sequer deixara a companhia deles, mesmo que estes não estejam passando os ensinamentos de uma forma correta e não faça as pessoas evoluírem, simplesmente por causa desta forma marxista de tratar os 'filhos'.
Fazer isto leva a ideia de que o 'filho' não está sendo leal com ele ou está fazendo algo que não seja errado. Estes pais/mães, padrinhos querem uma fidelidade que vai além da escravidão.
Não permita que ninguém o escravize mentalmente, fisicamente ou espiritualmente.
Qualquer um gostaria de voltar no tempo e ter a companhia daqueles que realmente lhes ensinam, os fazem crescer e progredir.
A quem você está fazendo companhia agora?
Não permita ser, estar ou ficar por obrigação!
Se você faz parte de algo que não cumpre com o engrandecimento da sua saúde física, mental ou espiritual, porém, sua presença somente traz beneficio para este famoso padrinho, pai/mãe, então você realmente tem um problema em suas mãos.
Na relação professor-aluno, é o aluno o beneficiado e o professor fica com o orgulho de se ver bem representado.